terça-feira, 20 de março de 2012

UM ENSAIO SOBRE ENSAIOS - Por Erwin Schrader

Artigo do Professor Dr. Erwin Schrader para reflexão em aula de regência:



Um ensaio sobre “ensaios”: reflexões sobre relações mediadoras entre regente e cantores na atividade de canto coral.

Resumo: O presente trabalho apresenta algumas reflexões sobre a função do regente, enfocando aspectos de sua ação pedagógica e seu poder de “mediação” frente a grupos de canto coral. O encontro mediado pelo regente educador, através de uma ação libertária permitindo uma autonomia expressiva a cada cantor, converte-se em estratégia para a construção de novas condições de possibilidade, sobretudo no que diz respeito à constituição de processos criativos. As reflexões aqui empreendidas fazem parte de um processo de observação do desenvolvimento artístico-musical de grupos de canto coral em Fortaleza/CE, procurando compreender essa atividade coral como uma busca de novas alternativas de expressão artística e estética, que empreguem estratégias pedagógicas para o aprimoramento ético de seus integrantes, formando, assim, multiplicadores críticos e reflexivos para a difusão dos conhecimentos partilhados na atividade coral.
PALAVRAS-CHAVE: Canto Coral; Regência; Educação Musical; Interpretação Musical.

A atividade artística de canto coral pode ser considerada um campo fértil para uma reflexão sobre relações de dominação estabelecidas pelas instituições e estruturas sociais de uma comunidade. A autoridade do regente sobre a organização de um grupo coral e a execução de obras musicais podem ser analisados como reflexo do pensamento hegemônico de uma determinada cultura dominante, quando o regente se propõe apenas a reproduzir um pensamento musical institucionalizado. Ao mesmo tempo, pode tornar-se uma forte ferramenta de intervenção pedagógica, desencadeando um processo de ensino-aprendizagem que supera o plano da simples execução musical artística. Essa ação pedagógica, tomada de forma integrada com a atividade musical, pode vir a ser uma ação mediadora de tomada de consciência, por parte de todo o grupo de cantores, acerca de seu papel social, tornando-o emancipado do poder e controle do regente.

Zander (1987, p. 154) afirma em seu livro sobre regência que “a responsabilidade do regente como autoridade é grande, porque com sua capacidade deve ser o guia, a alma e a vida de seu agrupamento”.

A partir dessa afirmação, inicio minha reflexão indagando sobre o papel de um regente, em ser “o guia, a alma e a vida” de um grupo coral. Partindo da idéia de domínio de elementos técnicos musicais – ritmo, harmonia, dinâmica e afinação – a função do regente de coro se
justifica, inicialmente, pela organização e sistematização de todos esses elementos estruturantes da melodia e da harmonia para uma execução musical coletiva coesa, adquirindo então a função de ser o condutor (guia) para a realização da obra musical. No entanto, a execução musical não se limita somente aos aspectos técnico-musicais. No caso de um grupo coral, os cantores são a principal fonte de emissão sonora, utilizando o próprio corpo para a realização musical.

Cuidar da integração e integridade desse grupo exige habilidades do regente que vão além do simples conhecimento da linguagem musical. É necessário compreender também as relações humanas numa perspectiva de valorização e respeito das individualidades pelo e para o “bem-estar do grupo”. Aspectos da vida social dos cantores e de suas experiências cotidianas interferem diretamente na execução musical. Nesse sentido, para Zander (1987), o significado atribuído ao regente em ser “a vida” de um agrupamento coral, acredito referir-se ao papel desempenhado por ele na condução das relações sociais do grupo e de sua formação. Mas e a alma? O que significaria ser a “alma de um coro”?

Toda obra de arte pressupõe em seu processo criativo e realizador o fenômeno da interpretação ou ato de interpretar1. A interpretação poderá partir do autor da obra, que interpreta a realidade para recriá-la ou do observador que busca interpretar o seu sentido, muitas vezes atribuindo uma nova perspectiva ao que se foi criado. No caso da execução de uma peça musical por um grupo coral, a sua interpretação fica, na maioria das vezes, sob a responsabilidade do regente. Cabe ao regente a transformação das obras musicais moldando-as significativamente e singularmente a cada nova execução a ponto de aproximar o cantor da essência musical da peça apresentada e, dessa forma, ser elemento fundamental e modificador da expressão impressa na interpretação dos cantores. Nessa perspectiva, acredito que Zander aponta o regente como “alma” de um coro por possuir o poder interpretativo sobre a execução da obra musical.

Lebrecht (1948) sintetiza, historicamente, alguns traços em comum entre os regentes. São eles:

ouvido agudo, carisma para inspirar músicos ao primeiro contato, vontade de impor seu estilo, grande capacidade organizacional, aptidão física e mental, ambição implacável, inteligência poderosa e um senso natural de ordem que lhes permitia atravessar milhares de notas dispersas para atingir o cerne artístico. Essa capacidade de obter uma visão de conjunto da partitura e transmiti-la a outros é a essência da interpretação (LEBRECHT, 1948, p. 18).

O domínio e a imposição da ordem pelo regente podem ser percebidos pelos cantores como um ato quase divino e heróico, e como afirma Lebrecht (1948, p. 18), causando um “fulgor etéreo em suas mentes e permitindo o uso e o abuso de poder pelo regente em benefício pessoal”.

Mas como fica a poder interpretativo da obra por parte dos cantores? Acredito que para um grupo coral contemporâneo a execução musical deverá estar centrada em uma abordagem dialógica entre os cantores do coro e seu regente.

Até o momento, podemos compreender que o regente possui um poder sobre os seus cantores podendo ou não transformá-los em meros instrumentos dos quais se serve para alcançar propósitos determinados. No entanto, seria possível encontrar na atividade de canto coral uma pedagogia do questionamento da experiência, pelos integrantes, na construção de uma obra artística, assim como as implicações em suas vidas das experiências musicais vividas? Essa pergunta desafia diretamente a figura central do regente apontando uma mudança de paradigma em seu papel no grupo, colocando-o não somente como um (re)criador musical, mas também como um educador.

A “concepção bancária” – expressão criada por Freire (1983) – de muitos regentes de coro em apenas depositar estruturas melódicas, rítmicas e harmônicas na mente dos cantores e administrá-las com sentido de produzir ou reproduzir uma obra artística musical, não deveria sobrepor ao processo de compreensão coletiva interpretativa da obra, responsável por suscitar nos cantores uma reflexão crítica sobre o seu fazer artístico e o seu cotidiano. Rousseau (2004, p. 81) afirma que “o primeiro de todos os bens não é a autoridade, mas a liberdade”.

O regente, nessa perspectiva, passa a ter o poder de “mediação” na busca de encontrar uma identidade para o seu grupo com base em uma ação libertária, dando autonomia a cada cantor de expressar sua relação com a música executada, encontrando também uma sonoridade coletiva verdadeiramente expressa. A relação entre o regente e o coro adquire contornos de uma relação entre sujeitos, onde o regente cria condições para que o coro tenha a sua expressão musical e saia da condição de mero objeto ou instrumento musical para ser “tocado”, conduzido, na maioria das vezes, tangido pelas mãos do regente.

Outro ponto a se observar, como exemplo de ação mediadora por parte do regente, são as situações que envolvem a organização corporal dos cantores nos ensaios e apresentações. Regentes preocupados apenas com uma emissão sonora limpa, perfeita, na maioria das vezes sonoramente “asséptica2” de seu grupo coral, optam por manter os cantores estáticos e desprovidos de movimento, condicionando seus movimentos ao movimento preciso e coordenado das estruturas do aparelho fonador. A voz de cada cantor e suas nuances são modeladas na busca de uma sonoridade hegemônica determinada pela percepção musical do regente. Neste caso, movimentações expressivas naturais do corpo dos cantores, na maioria das 
vezes involuntárias e associadas ao sentimento e prazer de cantar, parecem comprometer o resultado sonoro limpo final.




Um novo paradigma de sonoridade e expressão do coro pode ser encontrado a partir de um somatório das diferentes expressões sonoras e corporais vivenciadas na busca pela ação interpretativa de cada integrante do coro, encontrando assim uma sonoridade resultante.

 O regente ao mediar essas relações se torna mais atento ao processo do desvendar da voz de cada cantor, ao invés de imprimir uma técnica de emissão sonora na busca de uma sonoridade homogênea.

Desvendar o processo individual de cada cantor seja no âmbito sonoro ou corporal – ou especialmente na junção dessas duas expressões – num coro é construir a ação global de todo o grupo. Olhar para essa relação corpo e voz nada mais é do que observar as características do instrumental humano, que materializam a música através de sua voz; voz que está no corpo e, portanto, é corpo; corpo individual que transforma o corpo coletivo num coral. Dessa maneira, o processo de construção musical se torna mais denso e intenso mediado através de discussões necessárias para se encontrar um “acordo” para uma sonoridade onde as “diferenças” sejam complementares. Nesse sentido, podemos observar que o coro da ópera tradicional é um corpo homogêneo. Procura operar uma execução homogênea. Em uma nova perspectiva, o coro “coletivo” é um coro heterogêneo. Procura construir uma interpretação heterogênea unitária.

Em muitos exercícios e vocalizações não se percebe claramente uma conexão mais direta entre os exercícios de emissão vocal e o restante do corpo. Conectar os exercícios de emissão com o movimento do corpo, procurando um sentimento equilibrado na interpretação sem cair em uma execução demasiada medíocre apresenta-se como questão fundamental de estudo. O corpo do cantor não deve ser um(a) boneco/marionete para o regente.

O regente necessita soltar as cordas que sustentam a interpretação musical e emocional de um coro e iniciar um processo de mediação acerca de seus movimentos, do movimento da música e conseqüentemente do movimento do corpo coral. É necessário que haja um encontro, que cada cantor se encontre com o máximo de possibilidades de seus corpos, sem que para isso deva haver outro tipo de opressão dominadora. Elas podem ser encontradas no trabalho coletivo, desde que haja sensibilidade com as singularidades de todos por parte de todos – regentes e cantores – no processo de realização musical.

O resultado sonoro é o resultado do diálogo, do encontro. Não haverá diálogo se não houver, prioritariamente, uma crença em transformação por parte do regente. No processo interpretativo, a alienação do cantor em relação à obra musical executada, onde o músico fica subjugado ao poder interpretativo do regente, deve ser substituído por possibilidades de
expressão individual dos membros do coro através de uma interpretação coletiva – cantores e regente – da obra musical.

A construção do conhecimento musical se realizará como uma interação mediada por várias relações; pela mediação feita por outros sujeitos, como afirma Vygotsky (1987). O processo de educação e formação passa a ser um processo ativo, onde o diálogo entre os autores, intérpretes, regentes e coro, podem ser mediatizados pelas situações do cotidiano dos ensaios e apresentações, e para além deles. Nesse sentido, o mais importante será o “que se aprende” e o que se traz de novo para modificar as possibilidades de diálogos que são evidenciados nessas relações dos encontros.

Os encontros cotidianos, a co-habitação com outros artistas e linguagens num mesmo espaço/tempo, a soma das diversidades sonoras, podem ser re-convertidos a todo instante. O encontro mediatizado converte-se em estratégia para a construção de novas condições de possibilidade, sobretudo no que diz respeito à constituição de processos criativos. Para Gilles Deleuze (1992), “é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar”.

Muitos regentes possuem dificuldade afetiva de lidar com o “diferente” e muitas vezes se escondem atrás do poder da regência para não exporem os seus sentimentos. Mas como uma obra artística pode ser verdadeiramente exibida se não há uma exposição do regente para o seu grupo e para o público? Perceber os mecanismos de dominação entre os cantores do coro e o regente é o primeiro passo para sua liberdade a frente do coro, iniciando um processo artístico-educativo libertador e formador. Nesse sentido, a formação de um pensamento libertário do regente deve ser iniciada desde muito cedo, nas escolas de música formadoras de regentes, sendo necessária em seu projeto pedagógico a prática com base na organização do coletivo, para a educação da personalidade do indivíduo no coletivo e através do coletivo, como sugere Makarenko (1991).

As considerações feitas até o momento são parte de um processo de reflexão sobre meu desenvolvimento artístico durante alguns anos a frente de grupos corais. De alguma forma, acredito ter realizado transformações consistentes em meu processo de trabalho, afastando-me de antigas e sedimentadas práticas de execução musical, compreendendo a atividade coral como busca de novas alternativas de expressão artística e estética, que empreguem estratégias pedagógicas para o aprimoramento ético de seus integrantes, formando, assim, multiplicadores críticos e reflexivos para a difusão dos conhecimentos produzidos na atividade coral.

Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
LEBRECHT, Norman. O mito do maestro: grandes regentes em busca do poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MAKARENKO, A.S. Poema pedagógico. São Paulo: Brasiliense, 1991.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
ZANDER, Oscar. Regência Coral. Porto Alegre: Movimento, 1987.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Cultura como sinônimo de arte?

Coisas cotidianas, naturalizadas, podem passar sem que as percebamos muito bem mas, de vez em quando, é bom tentarmos entender melhor determinados usos, desusos e abusos. Um desses cotidianos usos e que paira sobre minha insônia de hoje é o uso da palavra "cultura" como sinônimo de "arte".

Entendemos por Cultura toda realização humana, portanto, em um simplificação de blogueiro podemos dizer que o que não é dado pela natureza, cultura é.

Mas o fenômeno de usar a palavra "cultura" quando se quer falar especificamente de "cultura artística" tem implicações bastante interessantes. A Professora Maria Juraci Maia Cavalcante, em artigo publicado em 2009 chama atenção para uma questão importante: a primeira "Secretaria de Cultura"  do Brasil foi Criada no Ceará em 1966 e aponta:

                UM ELEMENTO COMUM A TODOS OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS  À CULTURA, COMO ÁREA DE CONTROLE SOCIAL E GESTÃO ESTATAL, É A PRESENÇA DE INTELECTUAIS. TRATA-SE DE UMA FUNÇÃO SOCIAL DE ELITES LETRADAS
 (Cavalcante, 2009, p. 110)
            
Isto posto, é possível nos questionarmos se o termo cultura como sinônimos de arte, ou de cultura artística, não é por si só uma qualificação da arte a qual nos referimos como cultura. Seria esta uma arte necessariamente culta?  um fazer artístico que se faz legitimar em aparelhos públicos/governamentais pela apropriação por parte de uma "intelectualidade ilustrada" (como parece ocorrer com a chamada "Cultura Popular)?

Este é um ponto inicial para uma reflexão a ser desenvolvida ainda, mas ficam aqui as questões.