segunda-feira, 16 de abril de 2012

Falando de Arte na UFC na Instalação da Secretaria de Cultura Artística



Minha mãe achava o estudo a coisa mais fina do mundo.
Não é. “A coisa mais fina do mundo é o sentimento”

Com este tocante “poema-reflexão” de Adélia Prado, apresento minhas poéticas saudações ao Magnífico Reitor da UFC, Professor Dr. Jesualdo Pereira Farias, aos demais colegas servidores públicos que compõem a mesa e aos que estão na plateia. Cumprimento os estudantes presentes e também a todas as pessoas que aqui, mesmo não sendo estudantes ou servidores da UFC, testemunham este importante momento que simboliza muitos sonhos na concretude de nossa realização mais recente: A Secretaria de Cultura Artística da UFC.

De início, gostaria de compartilhar uma inquietação que, sei, não é apenas minha e que por sua pertinência e relevância deve ser tocada. Tal inquietação que tange a natureza essencial da Secretria que hoje instalamos, pode ser expressa no seguinte questionamento: Secretaria de Cultura ou Secretaria de Cultura Artística?

Entendemos que o uso do termo “Cultura” como sinônimo de “Arte”, de tão corrente, tornou-se naturalmente legítimo em nossas práticas quotidianas. No entanto, pensando que estamos instalando uma Secretaria de Cultura Artística, instância que tem como objetivo “trabalhar pela articulação das iniciativas relacionadas às artes, incentivando e apoiando projetos” e cuja missão é “fortalecer a cultura artística, compreendida como dimensão inalienável da vida universitária”, penso ser pertinente nos determos um pouco em uma tentativa de compreensão da confluência destes dois termos, (Cultura e Arte) pois a cultura contém as artes e os ofícios. A Cultura se manifesta em todas as práticas relacionais que, como humanos, constituímos em nossa trajetória no Planeta Terra.

Usar o termo “Cultura” quando queremos nos referir a uma parcela específica daquilo que humanamente construímos, as Artes, impõe, mesmo que sutilmente, juízos e valores ao artístico que se qualifica como “Cultural”, da mesma maneira que ocorre quando, sem nenhum estranhamento, falamos “cinema de arte” para nos referirmos a uma produção cinematográfica não comprometida com a grande indústria do entretenimento. Poderíamos então falar em: “Cinema Cultural”? “Cultura Cultural” - com Cês Maiúsculos? E, se assim for, como fica a cultura artística das maiorias tidas e escritas com letras minúsculas?

A Professora Juraci Cavalcante, querida colega da Faculdade de Educação, em um artigo publicado em 2009 nos informa que a primeira Sercretaria de Cultura do Brasil - como orgão de governo estadual - foi criada no Ceará, no ano de 1966 e nos aponta que “um elemento comum a todos os sentidos atribuídos à cultura, como área de controle social e gestão estatal, é a presença de intelectuais. Trata-se - nas palavras da Professora Juraci Cavalcante - “de uma função social das elites letradas.” (Cavalcante, 2009, p. 110).

Assim, no momento em que instalamos uma Secretaria de Cultura Artística da UFC, é pertinente nos questionarmos se o termo cultura como sinônimo de arte, ou de cultura especificamente artística, não é por si só uma qualificação da “arte” a qual nos referimos como “cultura”. Seria esta, uma arte necessariamente culta?  um fazer artístico que se faz legitimar em aparelhos públicos/governamentais pela apropriação daquilo que se qualifica como “Cultural”, por parte de uma "intelectualidade ilustrada"?

Assim nos parece ser. As instâncias que são instituídas para a definição de “políticas culturais”, historicamente herdam um desejo de tutelar e qualificar as práticas estéticas de nossa Cultura e, usando os filtros advindos dos saberes dos intelectuais que assumem suas direções, se arvoram do direito de definir o que é digno de amparo e de incentivo.

A instituição de uma Secretaria, órgão ligado ao Gabinete do Reitor com status de Pró-Reitoria, que pautasse sua ação na simples tutela gerencial que qualifica determinadas práticas artísticas em detrimento de outras, seria, na UFC, um equívoco, pois nossa história aponta em outra direção: a direção do encontro daquilo que é regionalmente universal com aquilo que é universalmente regional. Assim, compreendemos que a Secretaria que hoje se instala é de Cultura Artística, melhor dizendo, uma Secretaria stricto sensu.

Em julho de 1986, Na abertura do V Encontro Musical da UFC, o Nordeste 86, o então Pró-Reitor de Extensão, Professor Marcondes Rosa de Sousa, falou aos presentes sobre “uma ação na primeira pessoa do plural” e, dente outras coisas, nos disse: “A ARTE NÃO NASCE DA SOLIDÃO. MAS DA SOLIDARIEDADE, DO GRUPO E DO DAR-SE AS MÃOS” (...) “DAÍ A NECESSIDADE DO ENCONTRO. ENCONTRO PARA QUE SE REPENSE; PARA QUE SE APRENDA JUNTO; PARA QUE O PRESENTE SEJA UM MARCO E UM SINAL DO ENLACE ENTRE O PASSADO E O FUTURO” (Sousa, 1986, p.1).

Nesta perspectiva do encontro, da compartilha construtiva, reside também o ímpeto de nos aproximarmos de nossos anseios mais recônditos, para que possamos realmente romper nossos amplos espaços de solidão e, assim, estabelecer relações solidárias. Percebemos que a solidariedade como mote dos encontros é o ponto de partida e de chegada de toda e qualquer prática democrática. Há, portanto, no âmbito da vida universitária, que haver espaços para a diversidade e para a divergência - para o conflito construtivo que por seu caráter dialógico-plural deixa de ser “arenga cega”, gerando atritos para a superação da inércia.

Porém, o atrito inicial e essencial deve ser a arenga íntima, aquela inquietação com a qual Clarice Lispector nos desafia, ao propor e perguntar: “EXPERIMENTE! SE VOCÊ FOSSE VOCÊ, COMO SERIA E COMO FARIA?

No ser e fazer de nossos dias e noites, na lida, vislumbramos a crueza do estado de desconhecimento de nossas possibilidades expressivas. “Crueza cruel” que caracteriza nossa chegada, como adultos, à vida universitária. Reduzimos, na maioria das vezes, os anos de formação acadêmica a uma busca ávida pela competência em um setor específico de conhecimento e nossas outras possibilidades de atuação viva tornam-se anestéticas, anestesiadas quando poderiam, em estética, - no movimento do acordar-se -, nos levar a estabelecer relações significativas e significantes para encontros íntimos e coletivos: convergência de “bonitezas e decências”, como nos aponta o mestre Paulo Freire.

Neste cenário a Secretaria de Cultura Artística da UFC buscará o movimento estético não apenas junto aos estudantes e professores que já lidam com as linguagens das artes - sim, estes são sujeitos essenciais - mas é preciso que alcancemos também, através da Secult-Arte, quem se encerra em áreas tidas como distantes ou “duras”, para que a formação acadêmica que praotagonizamos possa superar o pragmatismo da preparação profissional competente, alcançando a formação humana que rompendo a solidão, gera a solidariedade que dá suporte à democracia.

Pensar na grandeza da UFC é, pois, um imperativo. As ações, projetos e espaços a serem articulados a partir da Secul-Arte-UFC, precisarão ser sempre projetados de conformidade com as dimensões da própria UFC, alcançando os diversos campi de Fortaleza e do Interior do Estado.

A Arte, no projeto que consubstancia a Secretaria de Cultura Artística é, pois, compreendida como um “bem comum”, ou como o direito à livre expressão, que, apesar de muito propalado, não pode ser exercido com liberdade na medida em que estamos contidos, reprimidos, pela ignorância de nossas próprias possibilidades expressivas. O desafio é amplo: sermos nós mesmos e, por isso mesmo, por sua amplitude, é fascinante e urgente.

Para a construção do íntimo que se torna coletivo e democrático precisamos imaginar. A grande mestra, Professor Izaíra Silvino Moraes nos aponta: “A GENTE PRECISA SOLTAR A IMAGINAÇÃO! ELA É PRCISA, SEMPRE. E PRECIOSA” - e acrescenta ainda: “A IMAGINAÇÃO PRECISA DE UM ESPAÇO PARA AMPLIAR-SE E NÓS NÃO PODEMOS PRESCINDIR DELA, NUNCA.” (Silvino-Moraes, 2007, p. 205-206).

Entendemos a Secretraria de Cultura Artística, como mais um espaço de ampliação da imaginação que constrói a UFC, uma vez que esta imaginação inventa a cada um de nós. E, ao final desta intervenção, gostaria de passar às mãos do Magnifíco Reitor, Professor Jesualdo Pereira Farias, um documento concreto de um espaço imaginado: A Casa Leilah Carvalho Costa – Núcleo de Estudos da Voz, na UFC. O Ato de entrega deste Projeto, em encadernação diferente da que já foi encaminhado à Administração Superior, é um ato simbólico de reafirmação de nosso intuito de imaginar, do nosso compromisso de, como artistas, também continuar a construção da UFC.

Fazendo nascer a UFC, o Professor Antônio Martins Filho teve a capacidade de imaginar uma universidade para o Ceará e moveu-se para a sua construção trazendo para o interior de sua imaginação, a imaginação de seus contemporâneos. Juntos, os imaginadores primeiros,  tornaram reais as imagens-sonho de universidade. Nesta onírica construção do real, vários sonhadores vislumbraram que as Artes deveriam colorir, musicar e movimentar o espaço acadêmico que se tornava concreto a cada dia e, desde seus primeiros momentos, a UFC abriga as Artes.

Foi necessário, no entanto, que um percurso de amadurecimento - um tempo de formação - transcorresse para que as Artes na UFC se equiparassem às outras áreas do saber universitário e conquistassem espaços de vida acadêmica legítima. Muitas vezes este tempo de formação ou de amadurecimento é visto como “tempo de vacas magras” ou “tempo de débito da UFC para com as Artes”. Porém, se olharmos este período com lentes mais generosas e cuidadosas, veremos que a UFC é constituída por todos nós que a sonhamos e que a construímos. Assim, o espaço das artes dependeu, depende e sempre dependerá de nossa própria capacidade de, como artístas e servidores públicos desta instituição, sonhá-lo e realizá-lo sempre considerando, para além de nossos anseios indivudiais, as urgentes premências sociais que nos cercam e que nos desafiam. 

Como instituição sonhada e realizada, a UFC traçou e traça suas prioridades legítimas na trama de sua própria história, história da qual hoje somos sujeitos sonhadores e construtores. O momento das Artes é o sempre que se reinventa e de nada adianta aqui, na UFC, apenas repetir o que já está posto e proposto mundo afora. Nossa tarefa é ousar, ousar e ousar – ou cantando com Gonzaguinha: ousar e ousar e ousar a beleza de ser um eterno aprendiz: ouso, portanto existo.

Em ousados espaços e projetos como o Coral da UFC, o Projeto Ópera Nordestina, o Curso de Arte Dramática, a Camerata da UFC, O Museu de Arte, A Casa Amarela Eusélio Oliveira, A Faculdade de Educação, na qual nasceu o nosso Curso de Música - hoje nota 5 - o Centro de Ciências Agrárias que abrigou o Curso de Estilismo e Moda,... em todos estes espaços houve sempre quem, com ousadia, sonhasse e realizasse artes, artifícios e artimanhas, de tal maneira que hoje alcançamos instalar a Secretaria de Cultura Artística da UFC, retomando os fios de prata de nossos artísticos sonhos e constatando juntos que não há mais porque pensarmos em dívidas. E não há razão para duvidarmos de que a UFC é a expressão de nossa real inteireza, aquela com a qual ousamos (sempre) sonhar.

Quando criança muito trabalho dei a minha mãe para sair da rede, encarar o mundo real e ir para a escola em manhãs sonolentas da década de 1970. Dona Raimunda Roberto, talvez pensando que o estudo fosse a coisa mais fina do mundo lutou para que eu pudesse ir à escola, e fui. Um dia, quando redigia minha tese de doutorado ela me perguntou: “meu filho, você não vai parar de estudar nunca”? – Ouvir minha mãe, que hoje está aqui a testemunhar conosco a instalação da Secretaria de Cultura Artística da UFC, fazer esta pergunta, foi uma satisfação: estava, ali, encerrada a etapa em que ela deveria acordar-me para o real. Um real com o qual ela mesma sonhara, pois, na mesma época em que cursava o doutorado, minha mãe, em escola pública noturna, concluía o Ensino Fundamental. Hoje, mãe, agradecer-lhe é o pouco que me é possível fazer: (Muito Obrigado!).

Pensar-se, sentir-se e encontrar-se acordado em apenas uma realidade é perigoso e limitante. Quando eu começava, no início dos anos 1980, em função das demandas reais por sobrevivência, a submeter-me a uma realidade previsível, que não fora inventada por mim, com a qual eu não sonhara, a UFC, através de seu Coral, entrou na minha vida e ninou, como fazia meu pai, meus sonhos de ser músico.

Com consciência clara de que a vida é o terreno das possibilidades a Professora Izaíra Silvino, como mãe também severa, conduziu a mim e a muitas outras pessoas em seu propósito de semeadura de sons. Me refiz gente e me inventei músico-professor pelo crédito que você, Professora Izaíra, deu aos sonhos que eu já não sabia que sonhava.

Estas são doações às quais não podemos retribuir, mesmo porque não foram praticadas esperando retribuição. Posso apenas reconhecer que muito do que sou aprendi indo com vocês, minhas mães, para além cansaço. Mas posso e devo, neste momento, comprometer-me em fazer o que estiver ao meu alcance para que a Arte, que tece muitos sonhos, sonhos de pessoas que, inclusive, não conhecemos nem conheceremos, continue sempre a correr, qual rio de sentidos e sensações, nos espaços da UFC que juntos construímos.

As mães e pais que aqui citei representam o que de maternal e de paternal há em todos nós. Como mães e pais havemos de cuidar do que deve ser cuidado, acordar o que deve ser acordado e ninar o sonho que precisa ser sonhado...

... ou como nos diz o poeta Manoel de Barros: 

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.

Fortaleza, 16 de Abril de 2012
Elvis de Azevedo Matos
Diretor da Secult-Arte-UFC